domingo, 16 de novembro de 2008

A vida e a comida, ou a comida na minha vida

Comer, como tudo aprende-se. Quero aprender a comer não apenas por mim mas para poder transmitir isso aos filhos que terei um dia. As crianças aprendem com bons exemplos e a alimentação que eu estava a fazer não era bom exemplo para ninguém.
Custa-me pensar que na minha família a relação com a comida não é pacífica. Somos 4 irmãos, sou a mais velha, e vejo como cada um de nós lida de forma diferente com deficiente educação alimentar.

Desde cedo tivémos de lidar com uma gulodice extrema (revejo-me na minha mãe) e com todo um ritual em torno da comida (mais o meu pai). Enquanto crianças praticávamos muito desporto e por isso não engordámos muito, apesar de eu e a minha irmã P. sempre termos sido cheiinhas. A ginástica, o volei, a dança, os quilómetros percorridos a pé, tudo isso nos permitia usar e abusar de toda a espécie de iguarias sem consequências de maior.

O problema foi quando crescemos, o tempo para este tipo de actividades encurtou, as rotinas mudaram... tudo mudou excepto a alimentação, que se manteve bem adocicada, abundante e sem pecado. No primeiro mês de faculdade engordei 8 kg (pesava 58 quando entrei), nos quatro anos seguintes não só não os perdi como fui acumulando mais alguns quase sem me dar conta.

Continuava a sentir-me ágil e resistente, uma atleta, e por isso quase nem dava pelos quilos a acumular. Lembro-me de um dia particular, no último ano de faculdade em que me pesei numa balança da farmácia (só costumava pesar-me em casa e estupidamente a balança iludia-me): 69 kg! Chorei baba e ranho porque nem tinha noção de como estava. Continuava a ser elogiada pelos homens e acreditava que nada tinha mudado até esse dia em que tive consciência do meu peso real.

No final da faculdade conheci aquele que considero o amor da minha vida. Após um curto namoro começámos a viver juntos e comer era sempre motivo de festa. Desde devorarmos uma caixa de chocolates na cama, a irmos comprar bolos quentes às 3h da madrugada ou fazermos jantarzinhos elaborados, vivíamos (e vivemos) numa lua de mel (quase) permanente em que o que deveria estar reservado para os dias de festa era (e é) repetido mais do que a conta. E nos outros momentos, os de tensão, pós discussões, de solidão, de incompreensão, havia sempre uma barra de chocolate onde afogar as mágoas. Ao mesmo tempo, entre emprego, tarefas domésticas, namorar, o tempo para fazer desporto e cuidar de mim encurtou. Cheguei assim ao peso máximo por mim atingido até hoje: 74 kg.

Levei tempo a mastigar esta realidade. Durante um mês tentei mentalizar-me de que algo teria de mudar. Que não podia cruzar os braços e ver-me envelhecer mais do que os meus 24 anos, deixar a minha auto-estima afundar-se, a minha relação deteriorar-se, por causa da comida. Tinha e tenho de aprender a alimentar-me: sem stress, sem ter de contar calorias, sem dramas. Afinal, comer devia ser uma processo tão natural como respirar. MAS NÃO É. Pelo menos para quem tem este tipo de relação com a comida.

Falava nos meus irmãos porque acredito que todos nós temos uma relação difícil com a comida. O meu irmão é tão ou mais guloso que eu e nem tenta controlar-se. Apesar de trabalhar ligado ao desporto esteve mesmo muito gordo. E mesmo agora, se está mais magro, é pela energia que gasta nos seu trabalho, não por comer melhor. A minha irmã P. sempre teve os estigma (mais ainda que eu) de ser gorda. Nos treinos de ginástica, quer os colegas quer o próprio treinador conseguiam ser muito cruéis o que levou a que abandonasse a modalidade.

A minha irmã S., pelo contrário, sempre foi a menina perfeita da família. Era naturalmente magra mas na adolescência a formas foram-se arredondando e ela nunca o aceitou. Muito inteligente, controlada, perfeccionista, não quis seguir os maus exemplos dos irmãos mais velhos e "engordados" e começou a sua luta com a balança... e com a vida. De início foi a minha irmã P. que notou (mas toda a gente achava que era implicância), depois eu e a minha mãe (mas todos os outros achavam que exagerávamos). A minha irmã chegou a perder 8 kg num mês (o máximo q ue ela pesou foram 68kg para 1,67m de altura), a mensatruação começou a faltar. Quando a alertávamos era arrogante. Tornou-se agressiva, triste, solitária, tão longe da menina alegre e viva que eu conhecia. Chegava a comer metade de um iogurte e a deixar o resto para depois, a deitar-se às 19h para não ter fome. Andava sempre com uma chávena de chá verde entre as mãos.

Começou a tratar-se com uma equipa multidisciplinar, mas a guerra com a balança, com o espelho, consigo mesma era uma constante. Isolou-se, começou a fumar, a beber, a refugiar-se em relações sem sentido... por fim a automutilar-se. Tinha momentos de completa euforia, de uma alegria estonteante, quase agressiva. Nessas alturas comia tudo o que via à frente. A estas crises de compulsão seguiam-se dias em que não saía da cama e praticamente não comia.

Depois chegou a fase em que começou a provocar o vómito depois de comer (quando tinha aqueles ataques de gula). Começou a ser medicada com anti-depressivos. Falou-se em anorexia-bulimia, em distúrbio bipolar, em depressão... Foi toda uma família a sofrer com esta situação. O meu pai que achava que bastava a vontade dela para se tratar, a minha mãe a correr de médico para médico, eu a sentir-me culpada por ter abandonado a minha família nessa altura (quando fui estudar).

Mais tarde foi ela própria estudar. Apaixonou-se. E quem diria.... o amor faz maravilhas. Eleva-nos a auto-estima, dá-nos vontade de viver, dá-nos um motivo para sair da cama. E no caso dela, felizmente, ele é uma pessoa atenta e trata dela. Sei que não está curada (mas recusa-se a continuar as consultas ou com medicação), que nunca vai ter uma relação saudável com a comida. Mas sei que batalha a batalha as coisas vão melhorando...

Por isso é que não acredito em dietas loucas e radicais. Não quero emagrecer para ser top model (até porque o meu amor gosta do meu corpo assim). Quero sim ser mais saudável, mais feliz e não ter de me esconder para comer, como me costumava acontecer (e ainda acontece) comigo.

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